Discriminação
e Assédio

ASSÉDIO
COMO FORMA DE DISCRIMINAÇÃO

O enfrentamento da discriminação e assédio no ambiente universitário passa por uma compreensão elaborada do que são estes problemas, como eles acontecem e por que tipos de estruturas se reproduzem dentro de um espaço de formação pessoal, como são os ambientes universitários, que deveriam ser de acolhimento e liberdade. Portanto, as definições oferecidas abaixo servem apenas para facilitar o acesso inicial a essas discussões, e não pretendem esgotar a complexidade dos fenômenos aqui abordados.

Ao longo das demais seções desta cartilha, trataremos de modo mais detalhado das formas de discriminação de gênero, de sexualidade, de raça, religiosa e capacitista. Por ora, nesta seção, serão apresentadas algumas definições preliminares dos conceitos de “discriminação” e “assédio”, termos-chave para a questão da diversidade e da inclusão em um ambiente universitário, bem como serão estabelecidas as suas relações com o conceito de violência. Em resumo, entendemos que não há diferença de natureza entre assédio e violência, e que existe uma relação circular entre violência, assédio e discriminação. Assim, a discriminação funciona como principal motivação do assédio e é reforçada por meio de episódios de assédio. 

Parte das referências que usamos sobre esses temas, ao longo da cartilha, trata explicitamente do mundo do trabalho. No Brasil, apenas recentemente se avançou na discussão sobre essa temática nos ambientes educacionais. Nesse cenário, as referências vindas do âmbito profissional são úteis, seja pela analogia possível com ambientes universitários como espaços de formação profissional, além de acadêmica, seja pelo fato de as universidades serem também locais de trabalho para os funcionários e funcionárias, sejam eles docentes e não docentes. Uma especificidade de uma universidade, em relação ao mundo do trabalho, é o fato de ser também um espaço de formação pessoal e, assim, a gravidade da ocorrência de práticas discriminatórias e assediadoras é acentuada.

Nesse sentido, a manifestação da Organização Mundial da Saúde (OMS), com relação ao papel das instituições de ensino no combate à discriminação e ao assédio, é contundente. Segundo a OMS, as instituições de ensino são espaços comunitários privilegiados e, dessa forma, têm uma enorme relevância como lugar tanto de reprodução da violência de gênero, quanto de ressignificação das relações de gênero e, assim, de erradicação da agressão. Políticas de prevenção e de enfrentamento do problema têm sido preocupação da OMS, entre elas, destacamos as campanhas de desconstrução dos estereótipos de gênero, e empoderamento de subjetividades femininas e masculinas menos patriarcais (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE, 2009). Ainda que a ênfase dada neste documento seja à violência de gênero, a discussão se aplica à violência baseada em outros marcadores também, como raça ou sexualidade. 

Tanto a discriminação quanto o assédio são formas especialmente cruéis de violência, uma vez que são capazes de comprometer a identidade, a dignidade e as relações afetivas e sociais da vítima, bem como o seu desempenho acadêmico e profissional. Podem acontecer na forma de violência psicológica, mas muitas vezes chegam a se manifestar em episódios de violência física e sexual. Com efeito, diversos documentos internacionais destacam o nexo constitutivo entre os fenômenos da discriminação (de gênero, racial, religiosa, capacitista, entre outros) e da violência (de gênero, racial, religiosa, capacitista, entre outros). 

O impacto, portanto, desse tipo de violência é perverso na vida de quem a experimenta, e não são atos isolados, nem acontecem apenas eventualmente. Podem acontecer por meio de comportamentos inapropriados, microagressões, estímulos e manutenções de ambientes tóxicos e outras violências tipicamente cometidas contra grupos vulneráveis. Reconhecer que a discriminação e o assédio não são apenas uma ação específica que acontecem em um momento determinado, mas também um complexo conjunto de práticas que se combinam de maneira sustentada e sistemática, é essencial ao seu enfrentamento. 

O Direito do Trabalho brasileiro reconhece duas formas de assédio: moral e sexual. De forma breve, assédio moral consiste em “um conjunto de comportamentos e práticas inaceitáveis, ou de ameaças de tais comportamentos e práticas, que se manifestam apenas uma vez ou repetidamente, que objetivam causar, causam ou são suscetíveis de causar danos físicos, psicológicos, sexuais ou econômicos, incluída a violência e o assédio em razão de gênero.” (Convenção 190 OIT, art. 1). Aplica-se a situações de constrangimento motivadas por diversas formas de discriminação, tais como as baseadas no gênero, na sexualidade, na raça, na deficiência física ou mental ou na intolerância religiosa. O assédio moral pode ocorrer de forma interpessoal, em relações verticalizadas, quando há uma subordinação empregatícia ou nas relações entre docentes e discentes, por exemplo. Ele pode também acontecer de forma interpessoal em relações horizontais, entre pessoas na mesma situação laboral ou acadêmica. O assédio pode ainda ser organizacional, quando as práticas/normas da instituição incentivam ou deixam de coibir a conduta assediadora. (OLIVEIRA, 2022)

DISCRIMINAÇÃO

Condutas que podem caracterizar Assédio Moral (IFSC,2021)

Desqualificar através de gestos, palavras, atitudes, a autoestima, segurança e a imagem de estudante ou grupo.

Desrespeitar qualquer limitação individual decorrente de doença física ou psíquica.

Desrespeitar qualquer limitação decorrente de doença física ou psíquica do indivíduo.

Constranger ou ainda atribuir funções incompatíveis com a formação acadêmica, como no caso de bolsistas e estagiários.  

Incentivar o isolamento de indivíduo sobre informações ou treinamentos necessários ao desenvolvimento de atividades acadêmicas e convívio.

Se manifestar em detrimento da imagem de indivíduo, submetendo à comentários maliciosos boatos inidôneos ou situações vexatórias.

Subestimar e ainda desvalorizar as competências de estudantes ou grupo de estudantes.

Valer-se de qualquer função comissionada para induzir e qualquer estudante a praticar ato ilegal ou inclusive deixar de praticar ato determinado em lei.

O assédio sexual, a seu turno, caracteriza-se como uma forma de assédio interpessoal (horizontal ou vertical) de conotação sexual. No contexto universitário, inclui atos que podem ser praticados em relações trabalhistas e acadêmicas. De acordo com a cartilha do Ministério Público do Trabalho, assédio sexual “[…] é a conduta de natureza sexual, manifestada fisicamente, por palavras, gestos ou outros meios, propostas ou impostas a pessoas contra sua vontade, causando-lhe constrangimento e violando a sua liberdade sexual” (MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO, 2019, p. 21). No ambiente acadêmico, poderíamos acrescentar situações de sedução dentro ou fora de sala de aula como formas de assédio vertical (HIRIGOYEN, 2010, p. 81; OLIVEIRA, 2021). 

É importante mencionar que as condutas que caracterizam assedio sexual podem também configurar os crimes de assedio sexual, de importunação sexual e o de estupro.  O crime de assédio sexual (CÓDIGO PENAL, art. 216-A)  ocorre quando o assediador se vale de sua superioridade hierárquica para obter vantagens sexuais da vítima, e, portanto, não se aplica a situações horizontais de constrangimentos, ainda que estas tenham um caráter sexual . 

O crime de importunação sexual (CÓDIGO PENAL, art. 215-A) visa proteger a liberdade sexual de todas as pessoas, independentemente do seu gênero, contra ato libidinoso cometido por qualquer pessoa, apesar de qualquer atributo ou qualidade individual.  Exemplos de atos libidinosos são as “encoxadas”; as “passadas de mão”; as “sarradas”; enfim, atos praticados sem o consentimento da vítima que não envolvem penetração ou contato direto com as regiões genitais da vítima. Portanto, o modo como o agente pratica é fundamental para que saibamos diferenciar a importunação sexual de outros tipos penais (LOPES, 2020). 

O estupro, por exemplo, conforme art. 213 do Código Penal, difere-se da importunação sexual, pois para a sua caracterização o(a) ofensor(a) deve constranger a vítima, com uso de violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou praticar ato libidinoso. O assédio sexual, diferentemente da importunação sexual, é um crime próprio, ou seja, exige que a conduta seja realizada por pessoa com qualidade especial, no caso um superior hierárquico da vítima. É preciso que o agente faça uso dessa sua posição privilegiada para constrangê-la (JORIO, 2021; LOPES, 2020).

ASSÉDIO SEXUAL

Condutas que podem caracterizar Assédio Sexual (IFSC,2021)

 

Como já anteriormente foi afirmado, discriminação e assédio são conceitos relacionados que muitas vezes se sobrepoe. A Convenção nº 111 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), sobre Discriminação em Matéria de Emprego e Ocupação, estabelece que toda distinção, exclusão ou preferência fundada em raça, cor, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional, origem social ou outros fatores, que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade em matéria de emprego ou profissão é ato discriminatório (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 1998, art. 1, alínea a). A discriminação comumente é a motivação do assédio e, por isso, mulheres, pessoas com deficiência, população negra e LGBTQIAP+ costumam ser as principais vítimas do assédio (MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO, 2019, p. 28).

 

EXEMPLOS DE DISCRIMINAÇÃO (CGU, 2020)

Além de responsabilidades disciplinares, trabalhistas e criminais, o assédio (moral e sexual) e a discriminação podem acarretar também formas de responsabilização civil da pessoa que asse dia. Práticas de discriminação e o assédio, como dito, causam um imenso dano à vítima direta de abuso e afetam também todo o contexto universitario, degradando as condições de ensinoaprendizado e o ambiente de trabalho dentro da universidade, além de prejudica a sua imagem institucional. 

A seguir, serão abordados esses conceitos em contextos específicos de discriminação sistêmica com base no gênero, na sexualidade, na raça, na religião e na deficiência fisica ou mental. Discutiremos formas de manifestação social da discriminação e, em especial, no ambiente acadêmico. É importante esclarecer que essa seleção reflete escolhas que tivemos que fazer. Poderíamos também ter incluído outras formas de depreciação, como a baseada na classe, pois também são sistêmicas e todas elas se afetam reciprocamente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 1988.

BRASIL, CONTROLADORIA GERAL DA UNIÃO. Guia Lilás: Orientações para prevenção e tratamento ao assédio moral e sexual e à discriminação no Governo Federal. 2023. Site CGU Disponível em https://repositorio.cgu.gov.br/handle/1/16385

BRASIL. Decreto-lei n o 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Brasília, DF, 1940.

BRASIL. Decreto nº 10.932, de 10 de janeiro de 2022. Promulga a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, firmado pela República Federativa do Brasil, na Guatemala, em 5 de junho de 2013. Brasília, DF, 2022.

BRASIL. Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012. Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências. Brasília, DF, 2012.

INSTITUTO FEDERAL DE SANTA CATARINA (IFSC). Portaria do(a) Reitor(a) nº 1450, de 18 de maio de 2021. Estabelece os procedimentos a serem adotados no atendimento a situações de assédio moral e assédio sexual sofridas por estudantes no âmbito do Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC). Santa Catarina-SC, 2021.

JORIO, Israel Domingos. Crimes Sexuais. 3°. ed. São Paulo: Jus Podvim, 2021.

LOPES, Twig Santos. Importunação sexual ou estupro de vulnerável? Violências sexuais e o atual entendimento do STF. Site Empório do Direito.com.br Disponível em: http://emporiododireito.com.br/leitura/importunacao-sexual-ou-estupro-de-vulneravel-violencias-sexuais-e-o-atual-entendimento-do-stf. Acesso em: 17 fev. 2023. (CGU, 2020)

HIRIGOYEN, Marie-France. Assédio Moral: a violência perversa no cotidiano. 12ª. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.

_______. Mal-estar no trabalho: redefinindo o assédio moral. Tradução de Rejane Janowitzer. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO. Assédio moral no trabalho: perguntas e respostas. Site MPT, s./d. Disponível em: https://mpt.mp.br/pgt/publicacoes/cartilhas/assedio-moral-no-trabalho-perguntas-e-respostas/@@display-file/arquivo_pdf. Acesso em: 17 fev. 2023.

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ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO (OIT) C111: Discriminação em Matéria de Emprego e Ocupação. Site Organização Internacional do Trabalho, s./d. Disponível em:https://www.ilo.org/brasilia/convencoes/WCMS_235325/lang–pt/index.htm. Acesso em: 17 fev. 2023.

OLIVEIRA, Marcos Aragão.  Conceitos interseccionais para o Direito do Trabalho: Análise das Lesões Extrapatrimoniais na Reforma Trabalhista. São Paulo: Editora Dialética. 2022. 142p

ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Interamericana para Prevenir, Punir, Erradicar a Violência contra a Mulher, “Convenção Belém do Pará”. Site Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Disponível em: http://www.cidh.org/basicos/portugues/m.belem.do.para.htm. Acesso em: 17 fev. 2023.

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAUDE (OMS). (2009). Promoting Gender Equality to Prevent Violence Against Women. Series of briefs Violence Prevention: the Evidence. Malta: World Health Organization. https://www.who.int/violence_injury_prevention/ violence/gender.pdf